“É uma tristeza abissal, como se eu fosse um planeta anão diante de
Júpiter e estivesse atraído e apartado ao mesmo tempo, como se eu
fosse poeira de estrela jogada no meio do universo interminável pra ser
devorada pelos seres que vieram antes dos deuses, pra desaparecer no
ventre de uma baleia cósmica ainda maior que o sol.”
Daniel Veiga em Antes dos Deuses
que nossa dramaturgia se faça hemorragia
fluído vital e que a gente persista
sendo malditos pelo não dito
pelo contrário pelo consenso
pelos pubianos encravados
pelo amor de todos os deuses
sejamos autores
sejamos atores
das dores e das belezas também
objetos voadores não identificados
objetos terrestres arrebatados
objeto indireto
José olhou para o céu
Maria olhou para si e também viu o céu
pés plantados em chão de concreto ou terra
porre de cachaça envelhecida em carvalho
ou suco de uva fermentado
chá de camomila com alecrim
sejamos alegria antes e depois do prenúncio do fim
Fernando Vasques, ator, músico e poeta, para o Malditos Dramaturgos! <3
Tudo muda. Gabriela. Seu nome majestoso acompanha um andar peculiar e divertido de menina. Coisas como preocupações, neuras e gasturas se vão, quando ela passa. O vento ao seu favor. Tudo muda.
Cheirosa como a flor do monte limado. Ela passa. Sinto que não sou o mesmo.
Gabriela, eu te amo! Sem mais e, sem menos. Assim, assim de repente, me descubro apaixonado pela menina.
Se tivesse alguma dúvida, talvez pudesse reorganizar meus pensamentos. A certeza do amor chegou. É um sentimento estranho, um tanto (muito) brega. Eu diria se tratar de um sentimento desajustado, confuso e complicado como nenhum outro. Complexidade comparada somente ao ódio e a saudade, mas um pouco mais lisonjeiro. Demasiado bagunçado pelas suas sutilezas e peculiaridades. Coisa do “só amor” ou “amor só”. Somente o amar, poderia explicar tamanho reboliço.
Gabriela Panela. Remota infância. Catando seus morangos com uma caçarola gigantesca. Correndo dos cachorros e, rindo dos gatos assanhados que a perseguiam. Assim que eu me recordo dela.
Gabriela, meu amor! Pés descalços. Sorriso de criança. Bochechas coradas. Sem rumo. Sem destino. Sem nada. Voava-se. Corridas na vizinhança, esvoaçando seu vestido amarelo, seu cabelo despenteado. Tudo nela precisava ser arrumado. Coisa de menina.
As lantejoulas no trabalho de geografia, a pipa que tentava, em vão, fazer subir ao céu. Lembro-me.
A cor dos seus olhos. Esqueço-me.
Lembro do céu, do sol e, da chuva, mas não de seus olhos. Os olhos de Gabriela. Uma pena não lembrar de olhos tão lindos. Verdes, castanhos, azuis, negros… Seus olhos eram certamente belos. Essa é a certeza que me acompanha em meio à tantas imprecisões que me denúncia esta memória falha. Coisa de velho.
Gabriela se foi ainda criança. Teria se tornado uma bela mulher. Uma pena que se foi. Talvez pela pressa, talvez pela euforia descontrolada de seu corpo juvenil, não se conteve e foi-se sem …
E até aquele dia havia existido nele
um medo inconfessável do fracasso
Por isso, não fazia nada
Veja bem:
fazia
Dedicava-se em suma a qualquer atividade que carregasse em si a aparência
de alguma coisa
embora
na realidade
analisando detalhadamente
não trouxesse a essência
de coisa nenhuma.
Ocupava-se todos os dias cotidianamente de grandes distrações diárias
embora
não houvesse
viva alma
no mundo todo
que pudesse culpá-lo de ócio ou
deus me livre –
de inutilidade
Era um útil de fachada, mas um útil
Fazia a engrenagem girar, era o que importava
Soterrava-se no silêncio do meio-dia.
Cena1
(Uma moça entra na sala de espera da emergência com a ajuda de uma enfermeira)
Ela: Aiii, cuidado cacete, já disse que não consigo apoiar o pé! Ai, cuidado! Não posso mexer o braço! Desculpa…Dói muito e eu tive um dia horrível.
Enfermeira: Estou acostumada. Pelo menos sua boca está funcionando bem. Não quebrou. Podia ter sido pior… (ajuda sentar, lhe dá a bolsa e a papelada da burocracia médica). Agora é só esperar o médico chamar pelo nome. (sai)
(A moça deixa a papelada cair no chão. Tenta pegar os papeis e derruba a bolsa. Tenta pegar a bolsa. Um rapaz que está na sala de espera a observa)
Ele: Precisa de ajuda?
Ela: Não! Obrigada. (Tenta pegar a bolsa uma vez mais, porém se atrapalha e cai no chão. Tenta se levantar, não consegue. Urra de dor) Ahhhh, merda de braço, merda de pé.
Ele: Eu te …
Ela: Não! Sou uma mulher independente!
Ele: Ainda bem que eu não sou.
Ela: Tá na cara que não.
Ele: É ? É tão evidente assim que não sou independente!
Ela: Não. Que não é mulher.
(Ele se levanta. Também tem uma perna quebrada e um braço.)
Ele: Eu também me quebrei todo. Não posso me apoiar. Mas se eu me virar assim. Ai minha mão. Agora… (Tenta ajudá-la mas também cai no chão.) Aiiii.
Ela: Eu disse que não precisava. Nem adianta me culpar!
Ele: Eu não disse nada!
Ela: Reclamou, disse ai! E eu não tenho nada que ver com isso!
Ele: Eu só queria ajudar…
Ela: Conheço bem vocês. Começa assim, com uma ajuda aqui, uma ajuda ali e depois o bote.
Ele: Nossa! Fica no chão então. (Ele tenta se levantar e não consegue). Vou precisar de ajuda. (Se olham).
Ela: Tá certo… Enfermeira… Enfermeira.
(Enfermeira entra. Ajuda sem tocá-los. Apenas dando instruções.)
Enfermeira: Pega a bolsa com o braço bom e o levanta . Você gira e …
Não sou muito a favor de explicar texto teatral,ele precisa se sustentar por si só, mas de vez em quando pode ser útil dar uma dica de qual exatamente foi sua ins-piração. Então, aí vai uma breve introdução: esta é uma cena que criei, que supostamente deve durar apenas alguns minutos. Supostamente. É sobre a escuta e sua falta, sobre o quanto casais conseguem dizer muito com poucas ou nenhuma palavra, e ainda assim fracassam tragicomicamente em comunicar suas verdadeiras angústias. Ou algo do tipo.
PS: Pode parecer besteira, parnasianismo aguado, até, mas as pontuações são muito importantes. De verdade. Se eu fosse recomendar algo sobre a transposição do texto pra cena, eu recomendaria investiga-las.
Um dia chega
Um casal de velhos, sentados à mesa no café da manhã.
Velho: …
Velha: …
Velho: …?
Velha:…!
Velho: … Ah, muito obrigado.
Velha: …
Velho: … Eu disse: “muito obrigado”.
Velha: … Eu ouvi, não sou surda.
Velho: … Hahahahahahaha!
Velha: O que é tão engraçado?
Velho: Isso!
Velha: Você vê mais alguém rindo além de você?
Velho: …
Velha: …!
Velho: Essa eu não entendi.
Velha: E de quem é o problema?
Velho: … Certo. Vou chamar…
Velha: Quem?
Velho: Ah. Droga… verdade…
Velha: …, …, …!
Velho: ?!?
Velha: E fim de conversa.
Velho: Ah, é? Então tá, então.
Velha: …!
Velho: .
Velha: …!!!
Velho: .
Velha: …?
Velho: .
Velha: … Por que você não reage?
Velho: .
Velha: Não me force a isso!
Velho: ?
Velha: Eu não posso, seria demais pra mim, depois de tudo, de tanto tempo, admitir o fracasso seria admitir que a própria vida não tem sentido, e depois que abrirem os sótãos, o que irão encontrar, e se descobrirem que… (um ruído quase imperceptível ao fundo)
Velho: Você escutou isso?
Velha: Você está me escutan- espera, ouvi uma coisa?
Velho: Sim! Finalmente aconteceu! Eles decidiram acabar com tudo!
Velha: Ah, que alívio! … Podemos esquecer essa conversa, então?
Velho: A vida não tem sentido mesmo.
Os dois se dão as mãos. Um crescendo de estrondos. O …
Sempre que encontrava algo melhor, ela o trocava.
Tinha a sensação de ápice. Algo fugido de dentro, do centro. Algo abominável. Procurava o pé. Procurava sempre pelo pé. Jamais sorria.
Tentava de todo modo se livrar da desagradável criatura. Em vão, sempre em vão. Era mais forte, mais alto e visivelmente superior.
Cortava-lhe lasquinhas do dedão esquerdo. Tentava feri-lo. E corria de medo dele. Morria de medo dele.
Tinha porém uma curiosidade, unida com uma coragem inusitada.
Forte e lerdo, ele acordava. Fazia dois movimentos bestiais e retornava ao seu sono íntimo e refrescante. Voltado para o sol. O segundo sol.
Ela precisava trocá-lo, e tocá-lo em outra extremidade do seu ser corrente. Prendê-lo em seu arco flamejante. Cortá-lo novamente, quem sabe?
Foi-se em nova investida: Cuspir-lhe à cara. Falsos trejeitos a desconcertaram.
Gestão de seus movimentos.
Estava pra desistir diante de tudo aquilo que era a criatura. Pensou-se em ir. Pensou-se ali. Logo, pensou em ficar. Tentar tudo novamente. Acordar sem despertá-lo.
Foi-se uma, duas e logo a terceira batida: Dormia profundamente em seu recanto não mais silencioso.
Foi-se quatro, cinco e a sexta batida: Virou-se para o lado.
Foi-se sete, oito, nove e a décima batida: Trovoadas seguidas de vento!
Acordara o gigante! Seus pés bateram no chão com impressionante força e firmeza. Ela sucumbiu diante do pesado pó.
Distante corrida até o fim seguro.
Precipitou-se a desistir. Indo embora pelo torto caminho de pedra lascada e seca. Água em teus olhos. Água salgada surgia, embaçando sua visão.
Ele se aproximava. Seu desespero, seu choro, sua pulsação antes pendentes, explodiram.
Aproximava-se. Suspense mórbido.
Foi então que a criatura sorriu. A ergueu com sua mão de pele tão dura.
Diante dela o gigante sorriu.
Não iria mais trocá-lo. Apenas tocá-lo. Para sentir.
Sentiu-o como havia sonhado em sentir seu predecessor inexistente.
Por fim sorriu.
This error message is only visible to WordPress admins
Error: Connected account for the user malditos_dramaturgos does not have permission to use this feed type.